«Talvez seja esta a minha forma de realismo trágico, categoria estética e filosófica que acabo agora mesmo de inventar», José Jorge Letria in Coração Sem Abrigo»
Um homem vive como “sem abrigo”, tendo arranjado por companhia um cão. A história dá para um romance. Dela procuramos tirar um conto, um canto. Um canto sem versos, uma prosa capaz de cantar contando, a fragilidade da vida, da mente humana.
Interrogo-me, qual a “categoria filosófica” a dar à ideia de abandonar o mundo das obrigações familiares, sociais, amorosas, odiosas? Que rosas cairiam das mãos de um vagabundo, se lhe dissessem:
- Mostra o que levas nesse saco!?
Imagino-me de cabelo comprido, desgrenhado e de unhas a pedir que as corte com os dentes, mas sem dentes, sujas, a pele das mãos crestada pelo frio, sol, intempéries. Recosto-me, deixo a mão continuar a escrever esta espécie de sonho sem pesadelos.
Nesta história morro sem incomodar muita gente, só as almas que se comovem com a tristeza dum cão. De manhã o cão quer ir procurar comida, reclama a minha companhia. Lambe-me a cara, não recebe a costumeira festa. Apercebe-se de que algo de errado aconteceu, definitivo e terrível, dono ao contrário, o seu companheiro morreu. O cão já não tem quem tomar conta, ladra, chora, chama. Alguém se aproxima, trás máquina fotográfica, é repórter?
A_final… este conto é uma crónica: a morte dum vagabundo com cão.
Nota: aconselho (a) compra dos livros que estão a sair com a revista “Visão”!
Lindo Fran... Teu conto-cronica-cantoria é lindo! E sim, pobre cão!!!
ResponderEliminar~_~•
A meu ver, trata-se de uma autoficção que dá o seu recado "... Morro sem incomodar muita gente ...")E, depois de morto, tem direito a foto no jornal. Pelo menos, não corre o risco de ser transformado numa marca de roupa ou de refrigerante (afinal, um "sem abrigo" sempre tem alguns privilégios...).
ResponderEliminar"Qual a categoria filosófica a dar à ideia de abandonar o mundo das obrigações familiares, sociais, amorosas, odiosas"? Para alguns, poderia ser, talvez, realismo mágico...:0)
Conto ou crónica? Rubem Braga deu uma boa resposta a esta questão. Quando alguém lhe perguntou o que era a crónica, ele respondeu: "repare bem: se não é aguda, é crônica".:0)
Francisco, gostei de encontrar, aqui, José Jorge Letria, o grande poeta do "labirinto sem Minotauro", "aquele que escreve, sempre/só para não morrer com a comoção dos livros adiados".
Obrigada pelo conselho. Vale a pena, sim (Natália Correia, desta vez!). Já não encontrei o "Coração sem abrigo", mas vou comprá-lo, em breve.
Um abraço
Maria João Oliveira